Da pele de burro às secundinas
Já vimos como durante a Idade Média a explicação para os nascimentos monstruosos, mesmo que totalmente fantasiados, se justificava por via da podridão e devassidão da matriz feminina. Essa sujidade ou prazer sexual, marca de uma corrupção moral da mulher, transmitia-se de igual modo ao embrião que alimentava, dando origem a um nascimento monstruoso. O excesso de apetites durante o coito e outros mais alimentícios mas igualmente desregrados durante a gravidez podiam ser os causadores de tais deformações da prole.
A avidez do desejo e do olhar que cobiça testemunhava este poder de absorver pelos olhos as imagens externas que se moldavam depois no interior do corpo ao embrião.
Este o tema encontra-se nos contos populares em torno dos meninos-animais, produtos de feitiço entre bichos e da rapariga bestializada que não controla os desejos e tem relações com um animal.
Inserem-se entre contos de carácter iniciático, muitas vezes de teor incestuoso como o da Pele de Burro, permitindo que no final do processo cada um dos personagens readquira o que lhe estava em falta. Ao animal copulador a plena masculinidade; à tonta rapariga descontrolada, a feminilidade sociabilizada- exorcizada a bestialidade tudo volta à normalidade.
A pela representa o duplo, a própria monstruosidade que se vai vestindo e despindo, numa simulação da cópula que se protela e cujo desenlace tanto é temido quanto inconscientemente desejado.
No folclore são as peles dos animais- burro, serpente, cão, javali, que transformam os humanos e os bestializam e das quais eles vão necessitar de se desembaraçar para encontrarem a sua humanidade completa- a sua alma.
Algo idêntico se processa nas mais antigas crenças e rituais em torno da placenta do feto e do recém-nascido.
O termo placenta só aparece tardiamente, em meados do século XVI- Fallopius chama-lhe placenta uterina- por semelhança com a forma de um bolo que adquiria quando expelida após o nascimento.
Com efeito, o termo até aí usado era a das peles- as secundinas- que secundam o saída da criança do útero materno. Em torno destas peles ou cascas existiam variadíssimos rituais como enrola-las em torno do corpo do recém-nascido e da sua cabeça de modo a incutir-lhe uma boa aura.
Teoricamente havia uma justificação para estas tradições e ritos: as secundinas eram o duplo do feto, competia-lhes impregná-lo de influências espirituais que este recebia pela parte da mãe- os tais desejos ou os malefícios das visões cobiçosas- mas eram também as secundinas o seu duplo anímico que lhe oferecia a individualização.
Compreende-se melhor este papel das membranas como duplo. Ligado ao corpo materno pelo cordão umbilical, seguindo rituais variados que ainda hoje se realizam entre diversos povos, como sucede entre os índios da Amazónia.
Para estes, o recém-nascido não tem identidade antes de se fazer aparecer- É um feto-“o que estava a ser feito”; o que estava a ser encorpado” e mesmo no momento do nascimento não é imediatamente aceite como humano.
Pode ser disforme e monstruoso e nesse caso é imediatamente enterrado, mas mesmo que o não seja necessita de passar por um ritual de corte do cordão e separação das secundinas. Essa tarefa cabe a um parente do pai que vai assumir a condição do não-humano e é ele que, ao cortar em dois o nascituro- o duplo da secundina e a criança que fica desprotegida e, a partir daí necessita de cuidados- permite a sua identidade. depois deste sacrifício do duplo, o que era feto apresenta-se autónomo em relação ao duplo- a placenta e está em condições de se integrar no género humano que o recebe.
A posição perante as características das secundinas vai evoluindo entre a magia e a progressiva tendência para a sua materialização. A teoria dos simulacros de Lucrécio já tinha dado o primeiro passo ao considerar que os duplos eram apenas formas materiais. No entanto, ele próprio ainda se socorre do exemplo das peles- membranas dos bezerros à nascença, ou da pele da serpente que é largada no topo das árvores, para as associar aos duplos materiais- emanações visíveis e palpáveis dos corpos que existem na natureza.
É nesta teoria que Leonardo da Vinci se inspira para encontrar uma explicação para a alma da criança dentro do copo materno. Leonardo está a meio caminho entre a tradição mágica e a explicação mecanicista. O humanista utiliza os estudos práticos de anatomia para defender a ideia da existência de uma alma para dois corpos, fazendo transitar para dentro do corpo as crenças mágicas do tradicional pode mágico do duplo. No interior do útero os espíritos dos desejos maternos transmitem-se ao feto por meio do cordão umbilical, impregnado-o de marcas que o artista não explica de forma materialista.
“A Natureza não necessita de contrapeso quando cria membros adequados ao movimento do corpo dos animais mas põe lá dentro a alma do corpo que os forma, quer dizer, a alma da mãe, que constrói, primeiro, no interior do ventre, a forma do homem e, chegado o momento desperta a alma destinada a habitá-lo. Ao princípio a alma fica em estado dormente sob a tutela da alma da mãe que a alimenta e lhe dá vida através do cordão umbilical e as secundinas e o cortilédones prendem a mãe à criança. Eis por que um apetite um apetite, um desejo muito forte, um temor que a mãe sinta, são mais fortemente sentidos pela criança do que pela mãe”.
Só com Descartes a alma é separada do corpo, unificando-se na substância pensante tudo o que até aí estava disperso sob o efeito dos espíritos autónomos. O problema do duplo que tanto o atormentou, bem patente na escolha de uma imagem de Durer representando duas irmãs siamesas para capa do Tratado do Homem, é deste modo resolvido. A noção de corpo máquina não aceita a tradição mágica dos duplos, remetendo-os a eles e a todos os erros e enganos para a capacidade da imaginação. Com este centralização na substância pensante deixam também de ter sentido os próprios monstros que passam para o estatuto de meras ilusões.
Teoricamente, é claro, já que na prática tudo será bem diferente…
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